21 de maio de 2006

VIVA O FESTIVAL DA CANÇÃO

Antes de mais nada, quero dizer que é bom estar de volta. Tive de fazer uma pequena paragem que me levou para outros sitios e, assim, cá estou eu, pronto para divulgar mais curiosidades ou mais umas imagens curiosas e com energias renovadas para o fazer.
Ontem, estava a ver o festival da eurovisão com uns colegas quando anunciam que os vencedores foram os finlandeses. Os meus colegas acharam injusto e disseram que o sistema de voto do festival da canção era injusto e que o sistema eleitoral «um homem-um voto» é o mais correcto. Afinal, quando há eleições já toda a gente ouviu expressões como «em democracia o povo é soberano» e que o resultado é o mais justo-como os próprios derrotados afirmam, certo?
Errado.
O principio «um homem-um voto» pode levar mesmo a gritantes injustiças, elegendo o candidato menos apoiado pelo eleitorado. Estas afirmações nada têm de ideológico, estão provadas matemáticamente e publicadas em literatura científica. De resto, se quiserem, podem substituir as eleições legislativas pelas do vosso clube de futebol favorito, do administrador de condomínio ou do papa: as afirmações não se alteram.
Como já me devem estar a chamar de maluquinho, ou a dizer que mais valia continuar de férias, vou provar esta teoria dando um exemplo.
Para um dado cargo, existem três candidatos, a Ana, o Bruno e o Carlos (daqui por diante designados por A, B e C), e que o universo eleitoral é constituido por 12 pessoas. Cada eleitor tem a sua hierarquia de preferências entre A, B e C. Se um eleitor prefere A a B e, por outro lado, B a C, vamos designar as suas preferências eleitorais da forma A>B>C.
Suponhamos então que as ordens de preferência eleitoral dos votantes são as seguintes: para 5 dos eleitores, A>C>B; para 4 dos eleitores, B>C>A; para os restantes 3, C>B>A. de acordo com a regra «um homem-um voto», cada eleitor vota na sua primeira preferência. Resultado: a Ana é eleita com uns confortáveis 42%. E com toda a justiça, pensamos.
No entanto, o que aconteceria se o Bruno tivesse retirado a sua candidatura? O nosso sentido eleitoral leva-nos imediatamente a pensar que deve continuar a ser a Ana a vencedora. Errado! Uma simples contagem mostra que, retirando-se o Bruno, o Carlos ganha à Ana por 7 a 5-porque a Ana é a primeira escolha para 5 votantes, mas a última para 7. É eleito o Carlos.
Mais: nas outras eleições entre apenas dois candidatos, o Carlos vence o Bruno por 8 a 4 e o Bruno vence a Ana por 7 a 5.
Estes resultados sugerem fortemente que os eleitores, no seu conjunto, encaram o Carlos como o melhor candidato, visto que ganha a todos os outros isoladamente, e a Ana como a pior, visto que perde em comparação com qualquer dos outros.
Ironia do destino: é eleita a Ana e o Carlos fica em último lugar! O resultado da escolha colectiva foi o menos desejado pela maioria dos próprios eleitores.
Este paradoxo eleitoral tem um único culpado: o processo de contagem dos votos. Ele mostra que a votação plural-«um homem-um voto»-pode, ao contrário do que é intuitivo, não reflectir fielmente as opções do eleitorado.
Esta contagem não é nova. Tudo começou em 1780, quando o matemático francês Jean-Charles Borda, cansado do que considerava serem más decisões da Academia das Ciências, apresentou uma memória sobre contagem de votos em eleições. Borda descreveu os defeitos do sistema «um homem-um voto» (um dos exemplos que forneceu foi o acima descrito) e propôs um novo sistema, que demonstrou matematicamente ser mais justo. A Academia adoptou-o até cerca de 1800, altura em que foi proibido por Napoleão (cuja fama não provém do seu amor à democracia).
O método proposto, conhecido hoje como «contagem de Borda», é simples. Em lugar de «um homem-um voto», cada votante deve ordenar os candidatos por ordem de preferência. Se há três candidatos, a primeira escolha do votante recebe dois pontos, a segunda um e a terceira zero. No final somam-se os pontos obtidos por cada um dos candidatos. Ganha quem tiver mais pontos.
É mais ou menos clara a superioridade deste método sobre a votação plural. Na contagem de Borda o voto retém a informação sobre todas as opções do eleitor. Na votação plural é apenas considerada a primeira preferência do eleitor; as suas outras opções são ignoradas.
É, assim, natural esperar que a contagem de Borda retrate com maior fidelidade e precisão as preferências do eleitorado. Para retomar o exemplo acima, realizemos a eleição entre A, B e C utilizando a contagem de Borda. O resultado é de 15 pontos para o Carlos, 11 para o Bruno e 10 para a Ana. Fez-se justiça! O Carlos é eleito e a Ana fica em último.
Esta questão , no entanto, é mais profunda do que parece. O matemático americano Kenneth Arrow desconhecia a ilustre linhagem deste problema quando, em finais dos anos 40, publicou, como parte da sua tese de doutoramento, um resultado surpreendente-talvez o mais citado (e mal interpretado) resultado matemático relativo às ciências sociais.
Arrow considerou, em abstracto, todas as possíveis formas de eleição que satisfaçam três propriedades , das quais dificilmente se discorda. A primeira é a da liberdade: cada eleitor pode ordenar livremente os candidatos (desde que o faça transitivamente: se prefere A aB e B a C, então tem de preferir A aC). A segunda é a da unanimidade: se todos os eleitores preferem A a B, então A vence B nas eleições.
A terceira condição é a independência de alternativas irrelevantes: o resultado da hierarquização colectiva de dois candidatos depende apenas dos candidatos em questão. Isto é, se o resultado colectivo é A>B>C, então o grupo deve preferir A a C independentemente de B ser ou não candidato. Esta condição elimina, portanto, a possibilidade de haver paradoxos eleitorais à la Borda, como o exemplo acima construido. Assim, por exemplo, o sistema de voto plural não a verifica.
Para assegurar uma eleição livre e justa de paradoxos basta, pois, encontrar um sistema que verifique estas condições e substituir o sistema de voto plural por ele.
No entanto, o resultado chocante demonstrado por Arrow é o seguinte: com três ou mais candidatos, o único sistema eleitoral (com resultados transitivos) que satisfaz estas condições é aquele em que existe um eleitor fixo tal que o resultado da eleição coincide sempre com as suas preferências. Em português corrente: em que existe um «ditador».
O teorema de Arrow, que lhe valeu o Nobel da Economia em 1972, afirma que o único sistema eleitoral livre de paradoxos é... uma ditadura!
Significa isto que a democracia é uma ilusão? Que uma sociedade civilizada é forçada a escolher entre incoerências e ditaduras?
Felizmente não. Uma série de resultados demonstrados já nesta década pelo matemático Donald Saari, da Northwestern University, mostra qual é o problema da teoria de Arrow: as suas hipóteses permitem que os eleitores sejam irracionais, isto é, que possam fazer escolhas não transitivas. E daí os paradoxos.
Ora, adoptando uma hipótese semelhante á de Arrow, mas que exclua à partida esta possibilidade, o resultado demonstrado por Saari é novamente surpreendente. O único processo democrático que assegura uma eleição justa e sem paradoxos é... a velha contagem de Borda! Está salva a democracia.
Saari descreve os seus resultados, que demonstram a grande superioridade teórica da contagem de Borda sobre qualquer outro sistema, no seu livro Basic Geometry of Voting, publicado em 1995.
Todavia, falta aos matemáticos o maior dos trabalhos, porventura desesperado: convencer os políticos de que para haver justiça nas urnas têm de substituir o sistema «um homem-um voto» pela contagem de Borda. Ou seja, transformar as eleições numa espécie de Festival da Canção- ironicamente muito mais justo...

E vocês, o que acham? Devemos continuar assim, ir para o método de Borda ou eleger um ditador? Como diz a MTV, a vossa opinião conta, e eu conto com ela.
Saudações para todos.

3 comentários:

Pé de Salsa disse...

Olá João Figueira,

É muito bom tê-lo de volta com essa força toda.

Cumprimentos
Pé de Salsa

Terra e Sal disse...

Complicada a democracia Caro Figueira não?

E grande confusão ali está, e se a democracia não o fosse também, não seria democracia.

Tudo é sujectivo meu Caro Amigo.
O método de Hont, parece que se esqueceu de o apurar é outro assunto complicado, mas tudo não é mais q

Terra e Sal disse...

que uma maneira de andarmos contentes.
E depois já viu?
Quando se perde nunca se perde.

E também isso de algum modo é reconfortante para toda a gente e assim a democracia na sua bondade e tolerancia satisfaz "gregos e troianos".

Gostei do que descreveu e como tudo na vida, nada é perfeito, mas andamos todos de algum modo a tentar aperfeiçoar-nos.
Um abraço